sexta-feira, setembro 03, 2010

Sentimento de mundo




Freud começa "O mal-estar na civilização" falando do sentimento oceânico e dizendo-se incapaz de senti-lo. Bem, eu compartilho dessa condição. Nunca senti-me conectada ao mundo dessa maneira, como um sentimento religioso, oceânico, transcendental. Talvez eu seja mesquinha e demasiado mundana.
A verdade é que não creio que preciso ter fé em algo superior e misterioso para ter uma vida plena, significativa, na qual eventuais manifestações do divino possam ocorrer.
A maioria das pessoas não vê a beleza em coisas cotidianas. O homem genérico insiste em ver maldade e tristeza, e em não ter esperança no futuro.
A minha prática profissional me impôs muitos anos de escuta. Escuta atenta, interessada. E escutei muita gente, nas mais variadas situações. Quase sempre de sofrimento, é verdade. Mas não é só profissionalmente que escuto. Escuto amigos, parentes, pessoas que amo, e também desconhecidos, com a mesma atenção e interesse.
De todas as pessoas que já escutei (ou li), a maior parte não tem nenhum sentimento verdadeiro de fé ou esperança. Quem se diz religioso, em geral o é por medo, por necessidade ou por inércia impensada.
Encontrei poucas pessoas na minha curta vida (são apenas 32 anos) que são capazes de sentir amor pelo humano. Não um indivíduo, mas o humano.
Fui questionada inúmeras vezes sobre minha falta de fé em Deus. Ninguém nunca me perguntou apenas “você tem fé?”. A resposta seria afirmativa. Tenho muita fé na humanidade, tenho uma fé incondicional e infinita no mundo e nos homens. Me sinto parte dele e por ele responsável. E não preciso do sentimento oceânico pra isso.
As pessoas se chocam por eu não crer em Deus, mas não se chocam que interesses políticos imponham condições inferiores de vida a toda uma população. É isso o que acontece quando sanções são impostas ao Irã, por exemplo. Não basta a história sofrida desses persas, eles ainda ficam à mercê dos interesses dos líderes de 6 nações – o que não necessariamente representa a vontade dos povos dessas nações. Enquanto isso, Israel ataca embarcações com ajuda humanitária para a Faixa de Gaza e continua a negar a posse de armas nucleares.
É chocante que um casal arremesse uma criança pela janela. E é menos chocante que uma ilha inteira desapareça do mapa por causa das ações humanas?
Eu realmente não entendo as pessoas. Ainda me choco mais do que me surpreendo positivamente com as atitudes do homem. Ainda assim, eu tenho fé. E, mais do que isso, eu procuro colocar minha fé e minha esperança em cada atitude. Procuro fazer qualquer coisa com o máximo de amor que eu puder dar.
Hoje acordei e, quando abri a janela, vi uma leve bruma envolvendo as árvores que avisto da minha varanda. A luz do sol batia fraca e deixava a cena mais idílica, mais linda. Não precisei pensar em Deus pra apreciar e ficar mais feliz. O quadro fica menos bonito se não for obra divina? O homem é menos sagrado se apenas evoluiu de seres mais elementares?
O que questiono não é a fé das pessoas. Absolutamente. Vejo na religião uma necessidade e uma ferramenta que pode sim, ser usada de forma positiva. O que questiono é a necessidade da religião, ou do sentimento religioso.
Ontem assisti a um programa que descobri recentemente e de que gosto muito – Iconoclasts, que é transmitido no Brasil pelo Fashion TV. O episódio que vi ontem foi com Eddie Vedder e Laird Hamilton. Minha grande admiração por Eddie Vedder já foi afirmada e reafirmada neste blog algumas vezes.
Durante um passeio de helicóptero sobre a ilha Maui, os dois veem um arco-íris em círculo, e depois duplo. E têm ainda visões inacreditáveis da ilha. Em certo ponto, Eddie credita isso a Deus e fala de suas conversas com Ele. Daí me veio a ideia, a dúvida na verdade, sobre essa necessidade do divino inerente à maioria das pessoas.
Alguns dos meus maiores ídolos são ateus declarados. Todos seres humanos superiores, que deram ou dão uma gigantesca contribuição ao mundo. Muito maior do que a de Papas ou outros líderes religiosos. Freud, Saramago, Greg Graffin. Eles não precisaram de Deus pra fazer uma enorme diferença. Todos homens de muita fé – na ciência, na arte, no homem...
Se você não é capaz de ver o caminho que a lua corta pra você caminhar; se você não consegue respirar fundo, viver e ver o caminho de cada dia, eu sinto muito, mas não há Deus ou religião que o salve. E se consegue apreciar as coisas pequenas e grandes que o mundo oferece a quem quiser, o que você está dando em troca?
Não podemos viver com um pouco de mistério? Não podemos apenas apreciar a beleza e a alegria das coisas? Todos os grandes homens sabem que respostas estragam a surpresa deliciosa de descobrir a vida e o mundo.
Se a "Máquina do mundo" se abrisse pra mim, faria como Drummond: apenas seguiria meu caminho incuriosa de saber todos os mistérios da vida, mas curiosa de descobri-los todos. E senti-los no corpo e na alma, com o que vier de bom e de ruim do claro enigma de cada dia!

Um comentário:

Hildo Jr. disse...

maravilha de texto!
maravilha de sensação, maravilha de descrição!
Renovou também a minha fé, pra ser sincero!

and there's nothing left...
=D